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Por que commonlistas brasileiros querem proibir juízes de interpretar?

Esta coluna inaugura uma quadrilogia ou uma pentalogia sobre o “sistema brasileiro de precedentes”, o “sistema de criação de teses” e da implantação do “stare decisis” do common law no Brasil.
O que me levou a escrever sobre isso foi a precipitação de alguns fatos. A começar, o problema é tão grave que o stare decisis (que é a doutrina que sustenta o common law) já está até explicitado em tese sacramentada pelo ministro Edson Fachin, recentemente em voto em Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal. Quero demonstrar, tecnicamente, que essas teses são incompatíveis com a Constituição e com a teoria jurídica contemporânea.
Sustentando essas posições, há doutrinadores como Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Arenhart , que, entre outras coisas, dizem que
"os juízes e tribunais interpretam para decidir, mas não existem para interpretar; a função de atribuição de sentido ao direto ou de interpretação é reservada às Cortes Supremas. No momento em que os juízes e tribunais interpretam para resolver os casos, colaboram para o acúmulo e a discussão de razões em torno do significado do texto legal, mas, depois da decisão interpretativa elaborada para atribuir sentido ao direito, estão obrigados perante o precedente."1 (grifos meus)
Esta e outras citações estarão no centro deste debate. Dividirei o conjunto das colunas em três blocos: (1) o problema “metodológico” da teoria dos precedentes no que diz respeito à cisão entre interpretação e aplicação; (2) o equívoco de se pensar que a força vinculante do precedente está na sua razão da autoridade e não pela qualidade das suas razões somada à equivocada recepção do stare decisis no sentido de que o precedente nasce para vincular, ao invés de vincular contingencialmente e (3) a demonstração de que o dever de coerência e de integridade não significa a incorporação irrefletida de uma “teoria dos precedentes”.
Ao trabalho, pois.
Leio que a presidente do Superior Tribunal de Justiça disse que o STJ deveria ser o tribunal das teses relevantes. Isto porque o STJ deveria julgar menos e mais rápido (veja-se interessante crítica feita por Sérgio Arbex e Fernando Lacerda na ConJur). Daí a necessidade, segundo a presidente, de se aprovar a PEC 209/2012, que introduz a relevância na admissibilidade dos recursos especiais. A proposta também prevê que se houver uma súmula impeditiva de recurso, não será possível questionar uma decisão baseada nela. 
Querem transformar o nosso direito em um “sistema” de precedentes e teses. Na verdade, querem substituir o direito posto (leis, Constituição Federal) por teses. Ou “decretar” — como fez o ministro Edson Fachin no RE 655.265 (ler aqui) — que já vivemos, com o novo CPC, no common lawporque adotamos o stare decisis.[2]
Com efeito, do que se depreende do voto do ministro Fachin e parte da doutrina nacional, a doutrina do stare decisis non quiet movere já está implantada. Em vez de interpretação de leis e de casos, tudo se resumirá à aplicação de teses feitas por Cortes de Vértice (a expressão consta do voto e foi cunhado pela doutrina aqui analisada e criticada). Enquanto isso, no STJ já se anuncia a criação de um “núcleo para a consolidação do sistema de precedentes do novo CPC”. Também para o STJ existe um “sistema de precedentes” (demonstrarei cabalmente que essa tese é equivocada e não tem respaldo no CPC e na CF). Eis os fatos se precipitando. E formando a tempestade perfeita. Pois é, caríssimo Alexandre Bahia: você vem avisando há anos que a CF diz que o judiciário julga “causas”. Acho que perdemos. As palavras da CF já nada valem. Tudo se resume a uma aplicação utilitarista do direito para resolver seus problemas numéricos-quantitativos.
Vejam que não questiono, obviamente, a necessidade de se dar maior racionalidade ao sistema de justiça brasileiro. Batalho por isso há anos. É claro que algo vai mal quando se admitem, por exemplo, muitos mais recursos extraordinários do que se consegue julgar em um ano (para fazer referência, aqui, a outra tese do ministro Barroso). E lido adequadamente me parece que o CPC/2015 poderia oferecer, com seu contraditório e seu dever de fundamentação fortalecidos, uma mudança efetiva do modelo deliberativo dos tribunais, que viabilizaria, com integridade e coerência, uma estabilidade legítima e a inibição da litigiosidade aventureira. É nesse sentido veio muito bem o novo CPC a exigir que a jurisprudência seja íntegra, estável e coerente (artigo 926), para que se gerem expectativas aos cidadãos sobre suas reais chances e se possa vislumbrar o uso de recursos meramente protelatórios.
Também é inquestionável que Brasília tem se tornado uma verdadeira “terceira instância” de análise de casos que não têm, sei bem, maior transcendência social ou jurídica (conflitos individuais, patrimoniais, disponíveis etc.). Estamos de acordo com relação ao diagnóstico. É um lugar comum, e não é sem motivo que isso é assim, falar em “crise do Judiciário”[3] e quetais. Mas quem sabe haja caminhos que não passem por um “desmonte” da arquitetura constitucional de nossas instituições?
É assim que, sugiro, devam ser lidas estas minhas reflexões: como uma colaboração, desde a trincheira dos constitucionalistas “conservadores” como eu — hermeneutas que acreditam que os textos jurídicos devem ser levados a sério — para o interessantíssimo debate público que vem sendo deflagrado em torno do assunto. Esta série de colunas, mais do que críticas, são uma homenagem aos pensadores do Direito do Brasil, mesmo que com eles eu discorde. E penso estar acompanhado da cepa de processualistas como Dierle Nunes, Marcelo Cattoni, Francisco Borges Motta, Lucio Delfino, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (para falar só destes) — eles não aceitam nem que vivamos um “sistema de precedentes” e nem que o judiciário possa legislar. Defendem a mudança de racionalidade no uso de julgados dos tribunais que deva partir da busca de uma eficiência que não desmonte o devido processo constitucional e que evite o isolamento de cortes supremas em relação ao restante da comunidade jurídica.
Qual é o busílis? Explico: face à ausência de racionalidade na aplicação das leis, parcela de processualistas passaram a defender a tese de que o novo CPC se abriu para a commonlização do direito. E, para tanto, entendem que devem haver Cortes de Precedentes que façam teses, que se tornam vinculantes para o restante do sistema. Detalhe: em nenhum momento seus defensores demonstram que, mesmo no common law, as cortes superiores são tribunais de julgamento de teses ou tribunais que produzam teses em abstrato ou generalizantes. No Brasil, parte da doutrina — e acima já se viu uma amostra — pensa assim: Lá que, como está, não dá mais, o melhor a fazer é delegar para o STF e o STJ o poder de fixar as teses, que servirão de precedentes. Essas teses/precedentes valerão por terem autoridade e não pelo seu conteúdo. É disso que se trata. E é disso que tratarei. Vou mostrar, inclusive, que “o que está aí” é culpa dessa mesma doutrina.
Minhas críticas continuam com a mesma matriz que sempre lidei: juiz não constrói leis. Não produz Direito. Nem o STF ou o STJ produzem Direito. Mas isso não significa que o juiz ou tribunal não realizem ato de interpretação na aplicação do Direito. O que fez com que chegássemos a esse patamar de irracionalidade aplicativa foram coisas como: a despreocupação com a decisão jurídica, a aposta no protagonismo judicial, a aposta no “decido conforme minha consciência”, “a concordância com o livre convencimento”, “o incensamento de teses autoritárias como as de que a decisão judicial é um ato de vontade”, “o ponderativismo”, “o pamprincipiologismo”, etc. Penso que não será, agora, mediante a delegação da adjudicação de sentido para Cortes de Vértice[4] que resolveremos o problema. Interessante é que os mesmos que defendem o commonlismo são os que sempre apostaram no protagonismo judicial. É o fantasma de Oskar Büllow arrastando suas correntes pelos castelos jurídicos.
De todo modo, parece difícil convencer os processualistas que defendem essas teses. Eles trabalham com uma perspectiva utilitarista. Não importa se isso gera transferência de poder excessivo às pretendidas Cortes de Vértice (sic). O que importa é que “funcionará”. Até já se diz que esse “sistema” é tão útil que a sua inconstitucionalidade é irrelevante. 
Pois é. A utilidade está acima da Constituição. A constitucionalidade cede terreno para a funcionalidade. Os fins justificam os meios. E já adianto um diagnóstico pessimista: conhecendo o Brasil, há grande chance dessa tese ser vencedora. Teremos um “sistema” de produção de teses abstratas e gerais – em uma imitação da pandectistica (ou sua vulgata) – que, embora inconstitucional porque inverterá a disposição dos poderes no tocante à legitimidade de produção do direito, funcionalmente será aceita. E à doutrina restará ser caudatária das teses e dos precedentes. Ou das duas coisas.

A tese dos commonlistas brasileiros é velha e vem lá do século XIX: uma mistura de positivismo clássico (a parte francesa da proibição de interpretar e também a parte alemã, porque os aludidos precedentes-tipo-teses-gerais brasileiros têm cheiro de neopandectismo), de realismo (empirismo jurídico=Direito é o que o judiciário diz que é) e uma forte pitada de jurisprudência analítica (seguir cegamente os precedentes). Eis o produto.
Pretendem uma transição tardia: ao mesmo tempo em que se abandona o juiz boca da lei (o que, cá para nós, isso é muito velho; já tinha sido superado por Kelsen, Hart e todos os positivistas pós-exegéticos, sem falar nos pós-positivistas e não positivistas que lhes sucederam), quer-se, aqui, a institucionalização de um realismo de segundo nível ou grau: Cortes que produzam teses que serão aplicadas pelo, agora, juiz (e desembargadores) boca-dos-precedentes (ou teses).5 Ou seja, o boca da lei troca de nome e função.
Logo, logo, poderemos dispensar o parlamento. E, como perceberão, até mesmo os juízes aos poucos poderão ser reduzidos em número e afazeres: eles estarão desonerados de fazer juízos de validade sobre o direito. Restará a aplicação subsuntiva. Por tudo isso e pela gravidade do problema, peço que o leitor tenha paciência para ler não somente esta coluna, mas também as demais que se seguirão.
Vou demonstrar que a tese dos commonlistas, ao contrário do que dizem, não reforça o artigo 926 do CPC (cuja inclusão no CPC protagonizei), mas, sim, viola esse dispositivo. Mostrarei que a pretensa funcionalidade da tese é a sua própria disfuncionalidade. Nessa linha, tive a pachorra de recorrer todo o CPC para ver se encontrava guarida dogmática para as teses doscommonlistas[6] e/ou defensores de Cortes de Precedentes e/ou defensores de que as Cortes de Vértice emitam teses gerais e abstratas (ou contendo os casos pré-interpretados). Examinei a lei, a Constituição e a teoria do Direitolato sensu. Não é difícil demonstrar que essas teses não somente não encontram guarida na teoria do Direito como na própria dogmática.
É o que farei na sequência. Serão mais quatro ou cinco colunas. Espero que uma atrás da outra. Estamos em uma encruzilhada. Como no livro de Lionel Schriver (We Need to Talk about Kevin), nós “precisamos muito falar sobre o futuro do nosso Direito”. Para muitos, isso pode ser chato. Mas, creiam, estou discutindo também o seu futuro, caro leitor. Preocupa-me seriamente essa guinada realista (no sentido do realismo empiro-ceticista) que parte da doutrina está protagonizando. Prestemos muita atenção.
Por 

Fonte: Migalhas

1 MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. ARENHART, Sérgio Cruz.O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 105.
2 Já há gente defendendo — explicitamente — que o judiciário deve legislar. Sim. Acabei de ler esta semana artigo assinado pelos professores Hermes Zanetti e Carlos Frederico Bastos Pereira “cobrando” que o judiciário passe a legislar. Não, o leitor não entendeu mal: os professores pedem que o judiciário legisle. Com certeza, concordam com a tese de que o STF é a vanguarda iluminista da nação...
3 PEDRON, Flávio Quinaud. Um olhar reconstrutivo da modernidade e da “crise do judiciário”: a diminuição de recursos é mesmo uma solução?Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. a. 16, n. 62, abr./jun. 2008.
4 Parece haver um problema com a nomenclatura das Cortes de Vértice. Em trigonometria, todo lado do triângulo é vértice. O ponto da base também é vértice e não somente o “cume” ou pico. Logo...
5 O acórdão do referido RE 655.265 relatado pelo Min. Fachin fala que o art. 926 introduziu o stare decisis, diz também que o CPC estabeleceu um sistema de precedentes vinculantes e que a Corte de Vértice está vinculada aos próprios precedentes e, ao final, estabelece uma “tese”. Afinal: qual é a relação de um stare decisis à brasileira com um sistema de precedentes à brasileira e a elaboração de “teses” vinculantes? O precedente é a tese? A tese é o precedente? Insisto em dizer que no common law isso não ocorre e não é assim. Mais: no common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros. Mas, se o STF assim disser, assim será... Afinal, se o direito é o que o judiciário, por suas Cortes de Vértice, disser que é, a quem reclamar? Caberia à doutrina contestar. Só que parcela da doutrina concorda com (ess)a commonlização do direito.
6 O epíteto “commonlistas” é absolutamente respeitoso; do mesmo modo que epítetos como kelsenianos, dworkinianos, hermeneutas, constitucionalistas etc.

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