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Custódia de presos em delegacias é aberração que precisa acabar

As atribuições dos órgãos públicos que atuam no sistema de segurança pública são elencadas na própria Constituição Federal (artigo 144 da CF), sendo também confirmadas pela legislação infraconstitucional, separando de forma nítida as funções da polícia judiciária, polícia administrativa e administração penitenciária.
No âmbito da polícia investigativa, as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais são essenciais e exclusivas de Estado[1]. O delegado de polícia, ao fazer a condução dadevida investigação criminal[2], especialmente por meio do inquérito policial[3], age de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, isenção e imparcialidade[4], e exerce função de natureza jurídica[5]. Nessa esteira, estabelece a Lei da Investigação Criminal (Lei 12.830/13):
Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
De outro lado, a Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) norteia a atividade estatal de custódia de presos, incumbindo tal tarefa à administração penitenciária. O sistema penitenciário deve funcionar sob acompanhamento dos demais órgãos de execução penal listados no artigo 61 da LEP, a exemplo do Judiciário e do Ministério Público (rol no qual não consta a polícia judiciária). Os locais onde os custodiados devem ser recolhidos são expressamente indicados pelo legislador: os presos provisórios devem ser mantidos em cadeia pública (artigo 102 da LEP), e os presos condenados em penitenciária (artigo 87 da LEP), colônia (artigo 91 da LEP) ou casa do albergado (artigo 93 da LEP).
Certamente não devem permanecer segregados em delegacia de polícia, que não é estabelecimento penal, e tampouco possui estrutura física adequada ou efetivo com treinamento específico. O detido só deve ficar recolhido na unidade policial durante o tempo estritamente necessário para a finalização do flagrante (em até 24 horas — artigo 306, parágrafo 1º do CPP) ou para o cumprimento do mandado de prisão cautelar.
O Supremo Tribunal Federal já confirmou essa obviedade:
A Constituição do Brasil — artigo 144, parágrafo 4º — define incumbirem às polícias civis "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares". Não menciona a atividade penitenciária, que diz com a guarda dos estabelecimentos prisionais; não atribui essa atividade específica à polícia civil[6].
Apesar de todas essas considerações, as autoridades insistem em manter presos em carceragens nas delegacias de polícia, que em muitos casos podem ser definidas, sem nenhum exagero, como verdadeiros calabouços em que seres humanos permanecem depositados sem seus direitos básicos, contra a vontade da polícia judiciária. Em muitas delas, além da superlotação e da insalubridade, não há correta separação de presos homens e mulheres, adultos e idosos, provisórios e definitivos, primários e reincidentes, ou mesmo conforme a espécie de infração penal (artigos 82 a 86 da LEP). À privação da liberdade fica acrescido um indevido sofrimento físico e psicológico, que atenta contra a dignidade humana e retira qualquer potencial de ressocialização do custodiado, que passa a cultivar um sentimento de cólera e de descrédito com a Justiça[7].
Não só os presos têm seus direitos violados, mas também os próprios policiais, que ficam imersos num odioso desvio de função. Os investigadores de polícia e escrivães de polícia pertencem a carreiras distintas dos agentes penitenciários, sendo regidos por leis próprias que levam em conta a diferença de suas funções. De igual maneira, o cargo de delegado de polícia é completamente distinto do diretor de estabelecimento penal, este pertencente a carreira específica que exige dedicação integral, conforme dispõe o artigo 75, parágrafo único da LEP. Aliás, esse requisito, somado a treinamento apropriado e experiência, faz parte das diretrizes internacionais estampadas nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela — regras 74 a 79)[8].
Os policiais, pagos pela coletividade para investigar crimes, acabam tendo que fazer a função de carcereiros. Deixam de direcionar esforços para a apuração criminal e, em substituição, são obrigados a prestar um deficiente serviço de guarda de presos (pois não há estrutura física ou efetivo suficiente com adequado treinamento). Ademais, em muitas oportunidades o mesmo policial que prendeu o indivíduo fica submetido a um contato diário com o segregado, absurdo que potencializa riscos de agressões físicas e morais.
Esse desvio funcional gera um efeito em cadeia, pois alguns policiais fardados percebem na falta de efetivo da polícia judiciária uma ótima oportunidade para usurpar-lhe as atribuições[9], deixando de fazer o patrulhamento preventivo para investigar crimes de menor potencial ofensivo[10]delitos dolosos contra a vida[11] e infrações penais em geral[12]. O resultado é que os agentes públicos prestam um serviço diferente daquele autorizado pelas normas constitucionais e legais, e com má qualidade.
O desvio funcional viola um postulado insubstituível no Estado Democrático de Direito, a saber, o princípio da legalidade, pois implica cometer a servidor público atribuições diversas das correspondentes ao cargo do qual é titular. Ao se compelir (ainda que de forma omissiva) a polícia judiciária a desempenhar papel estranho à sua natureza, fere-se a um só tempo o ordenamento jurídico nacional (artigo 37 da CF e artigo 2º da Lei 9.784/99) e internacional (artigo 1º da Resolução 34/169 da ONU — Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei).
É preciso abrir parêntesis na discussão sobre o desvio de função para lembrar que, apesar de os policiais militares não serem carcereiros, também não lhes cabendo a custódia dos presos no interior das carceragens, é sim função dos milicianos o patrulhamento externo das cadeias. Isso porque uma das espécies de policiamento ostensivo é justamente o de segurança externa dos estabelecimentos penais (artigo 2º, item 27 do Decreto 88.777/83), de modo a evitar a quebra da ordem pública (artigo 144, parágrafo 5º da CF). Além disso, cabe à Polícia Militar o auxílio à escolta de presos feita pelos agentes penitenciários, concretizando atuação preventiva para evitar a perturbação da tranquilidade social (artigo 3º do Decreto-Lei 667/69). Afinal, não se olvida que a tarefa de transportar um preso de um local a outro acarreta inquestionável risco à ordem pública, entendida como a ausência de desordem[13] ou de atos de violência contra as pessoas, os bens ou o próprio Estado[14]. O custodiado tem comportamento imprevisível, podendo a qualquer momento fugir, atentar contra a própria vida ou contra a incolumidade de terceiros, ou mesmo ser resgatado por comparsas, o que representa significativa ameaça à paz social.
Como se não bastasse, além da violação dos direitos dos presos e dos policiais, a população como um todo é atingida. As vítimas e testemunhas que comparecem à delegacia para serem inquiridas são submetidas a indevido constrangimento decorrente da presença de presos no mesmo local. Demais disso, há um insuportável risco de fugas derivado da fragilidade da estrutura das carceragens das delegacias (que, em regra, se situam em bairros residenciais) e da ausência de treinamento específico da equipe policial. É dizer, a omissão na retirada dos presos das delegacias acarreta a revitimização de ofendidos e a diminuição do nível de segurança da coletividade (ao recolocar indevidamente em circulação criminosos perigosos).
Esse quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais, a exigir imediata intervenção do poder público, foi reconhecido pela corte suprema como um estado de coisas inconstitucional[15]. Os argumentos para justificar a aberração são frágeis. A falta de vagas no sistema penitenciário não tem o condão te autorizar a extensão da superlotação carcerária para as delegacias de polícia, providência que não resolve sequer temporariamente o problema, mas apenas o amplia. De mais a mais, o postulado da reserva do possível e o princípio da separação dos poderes tampouco permitem que o Executivo se exima do dever de garantir o mínimo existencial do indivíduo[16].
Isso significa que o Ministério Público e o Judiciário, ao realizarem seu encargo de fiscalizar os estabelecimentos onde os presos ficam custodiados (artigos 66 e 67 da LEP), não têm a opção de aderir à cegueira deliberada do Executivo ou alegar que nada podem fazer para extirpar essas carceragens medievais. Devem obrigar a administração penitenciária a desempenhar corretamente seu papel, o que não envolve qualquer atribuição da polícia judiciária.
A providência a ser tomada consiste na imediata remoção dos presos das delegacias para os estabelecimentos penais existentes e a construção de novos presídios e cadeias públicas. A solução não passa por draconiana solicitação de que o delegado de polícia atue como diretor de estabelecimento penal e que os policiais civis se transformem em carcereiros.
É indubitável que o inadimplemento, por parte do Estado, das obrigações que lhe foram impostas pelo ordenamento jurídico, não pode repercutir negativamente na esfera jurídica do custodiado[17]. As autoridades, em especial as que compõem os órgãos da execução penal, devem respeito à integridade física e moral dos presos (artigos 40 e 61 da LEP).
Diante desse lamentável cenário, apropriada a provocação da doutrina:
Quando os telejornais mostram a situação carcerária, o sofrimento dos presos, amontoados em celas superlotadas, suplicando por melhora no sistema, será que essas cenas não têm o mesmo efeito espetacular que os suplícios que eram realizados em praça pública? Agora os locais públicos das execuções fazem parte do nosso lar. Não precisamos nos aprontar para sair de casa, a fim de assistir à execução do condenado. Podemos fazer isso sentados, confortavelmente, em nossos sofás[18].
Não é possível lavar as mãos e fingir que nada está acontecendo, impregnando os presos com a pecha de invisíveis sociais e impedindo que resgatem condições existenciais mínimas[19], reduzindo insuportavelmente os padrões de segurança pública e ferindo de morte a dignidade dos policiais.

[1] Artigo 2, caput da Lei 12.830/13 e artigo 2º-A da Lei 9.266/96.
[2] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; SANNINI NETO, Francisco.Independência funcional é prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Revista eletrônica Consultor Jurídico, jun. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jun-02/independencia-funcional-prerrogativa-delegado>. Acesso em 2/6/2016.
[3] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Revista eletrônica Consultor Jurídico, dez. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial-indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em 1º/12/2015.
[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.
[5] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, rel. min. Carlos Britto, DJ 9/3/2007.
[6] STF, ADI 3.916, rel. min. Eros Grau, DP 14/5/2010.
[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 62.
[8] Adotadas pela Comissão sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal da ONU em Viena, em 2015.
[9] STF, ADI 3.441, rel. min. Carlos Britto, DJ 9/3/2007.
[10] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM ou PRF. Revista eletrônica Consultor Jurídico, set. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado>. Acesso em 29/9/2015.
[11] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. PM homicida deve ser investigado pela Polícia Judiciária. Revista eletrônica Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-05/academia-policia-pm-homicida-investigado-policia-judiciaria>. Acesso em 5/1/2016.
[12] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Em vez da caneta do constituinte, armas dos militares mudaram a Constituição. Revista eletrônica Consultor Jurídico, jun. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jun-14/academia-policia-vez-caneta-constituinte-armas-mudaram-constituicao>. Acesso em 14/6/2016.
[13] BERNARD, Paul. La notion d´ordre public em droit administratif. Paris: Librarie Générale de Droit et Jurisprudence, 1962, p. 12 e 25.
[14] KNAPP, Blaise. Précis de droit administratif. Suíça: Editions Helbing & Lichtenhahn, 1980, p. 20.
[15] STF, ADPF 347 MC, rel. min. Marco Aurélio, DJ 9/9/2015.
[16] STF, RE 592.581, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJ 13/8/2015.
[17] STF, HC 93.596, rel. min. Celso de Mello, DJ 8/4/2008.
[18] GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação da liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 191.
[19] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
Fonte: Conjur

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